No "dicionário de psicologia", traduzido do "Vocabulário de la Psicologia" de Henri Piéron, de 1951, encontramos, entre outras, as seguintes definições de neurose:
- "Afecção mental que se caracteriza por perturbações funcionais, sem comprometimento da personalidade";
- "A neurose é constituída por sintomas somáticos, negativos e positivos, resultantes da falta de descarga de uma impulsão, sem intervenção dos mecanismos de defesa específicos na formação dos sintomas psiconeuróticos";
-"Neurose narcisista; Regressão que torna a transferência difícil, pois a libido é retirada dos objetos e investida de ego". Será que definições, como psique, corpo, mente, que decompõem o ser humano num mosaico de noções objetivadas, abstratas, autônomas, nos ajuda a compreendê-lo? Será que o indivíduo neurótico não nos revela na sua fisionomia, na sua postura, nos seus movimentos, nos seus pensamentos, sentimentos, nas suas vivências e na sua visão de mundo, algo mais do que perturbações funcionais, descarga de impulsos e desvio de libido?
Todo ser humano neste mundo, por isso também o neurótico, é uma abertura para o mundo; existe a seu modo, com todas as suas peculiaridades; assim precisamos observar e compreendê-lo na sua integridade humana.
Uma das suas manifestações que se destaca hoje em dia com grande freqüência é o tédio. É por isso que Medard Boss já há muitos anos se viu obrigado a formular o conceito da "Neurose do Tédio", esse mal que é tão típico para nós homens atuais como o foram as neuroses histéricas no tempo de Freud. O que significa a palavra "tédio"? Este termo procede do latim: tædium, do verbo tædere, e nos dicionários é traduzido como fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjôo, repugnância, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda. "Tædium movere si" (tacito) significa: tornar-se enfadonho a si mesmo. Em inglês: tediousness,tiresomely long or slow from dullnes, bored (cansativamente longo ou lento). Em alemão: langweiligkeit (tempo vagaroso, longo). Em francês: ce qui est fastidieux. No grego antigo, além da palavra ANIA (anía) que corresponde ao significado, tédio, existe também a palavra - THTH (titi) do verbo titaome, que significa falta de algo, escassez. Insistimos nas definições e na etimologia da palavra, não por razões escolásticas, mas captar tanto quanto possível o que nos revela, nos comunica. No tédio existe o aborrecimento, o desgosto, a falta de algo e, especialmente no alemão e no inglês, é ressaltada nitidamente, a vivência do tempo que fica estagnado. Mas não somente o tempo vivencial se altera, também o espaço se torna mais reduzido no sentido do desgosto, enjôo, na falta de iniciativa. Salientamos que estas vivências imediatas do tempo e do espaço são originárias. Os conceitos físico-matemáticos são procedentes delas e nunca, o contrário.
O tédio é um fenômeno que revela tudo que enfada, molesta, cansa, aborrece, incomoda, enjoa e estagna nossa existência. Todos nós em várias circunstâncias vivenciamos o tédio em dias ou horas tediosas. Mas quando o tédio domina e escraviza o ser humano em sua totalidade, então entramos na problemática da Neurose do Tédio. Preferimos não formular uma definição abstrata e generalizada da Neurose do Tédio, mas tentar esclarecer o que o ser humano dominado pelo tédio nos comunica, nos transmite, nos revela. Citaremos três breves exemplos de nossa experiência.
Uma pessoa no encontro psicoterápico relatou o seguinte sonho:
"Encontrei-me com várias pessoas em frente de um grande objeto semelhante a um escorregador. Uma depois da outra subia e
escorregava como se fosse um ritual, como se cumprisse uma obrigação ou praticasse um ato de rotina. Quem comandava todo
este jogo era minha mãe."'À pergunta: - O que lhe ocorre? O que vivencia este sonho?
O paciente responde:
- É exatamente como minha vida, monótona, tediosa, mecanizada, tudo feito som ânimo.' O fator mãe neste sonho, apesar da sua óbvia importância, não entra aqui em nossas considerações.
Um outro paciente manifestou-se assim:
"Sinto-me vazio, pardo, parece que tudo é forçado."
Falado sobre drogas, um outro disse:
"Eu e meus amigos tomamos drogas para fugir do vazio que sentimos, para nos livrarmos da monotonia ou do desgosto de viver". Todas estas revelações eram acompanhadas de grandes sentimentos difusos de culpa, bloqueio do futuro, opressão e falta de iniciativa, além de muitos sintomas psicossomáticos. Nestas manifestações a existência humana está presa na mecanização, monotonia, automatização, estagnação e no aborrecimento.
Por que é que, hoje em dia, estas manifestações reveladoras do tédio e as conseqüentes necessidades de compensação por atividades sensacionais, "stress" contínuo, fuga nas drogas, protestos violentos, geralmente acompanhadas por angústia acentuada, são tão freqüentes e insistentes? Tentamos refletir sobre vários aspectos desta problemática para conseguirmos, pelo menos, uma resposta parcial. Desde o triunfo das ciências exatas, da deificação do raciocínio matemático, da conquista tecnológica, começou o declínio da religiosidade. Nas civilizações antigas e na idade média, a fé não era um sistema teológico construído, mas a matriz e a raiz da vida humana. Até hoje, nos povos e nas chamadas camadas subdesenvolvidas, o ser humano ainda e capaz de vivenciar o divino, conviver com ele numa comunicação autêntica de EU e TU, dedicando e recebendo afeto, superando assim grande parte da problemática do vazio, do abandono, da angústia e da morte.
Hoje em dia a civilização tecnológica está em pleno desenvolvimento; ao mesmo tempo a religiosidade se desvanece e começa-se o rompimento com o divino, surgindo assim uma nova problemática para o indivíduo. Mas, o que caracteriza a civilização tecnológica industrial, ou melhor, a época tecnocrática? Encontramos a resposta para a questão no desenvolvimento crescente do industrialismo produzindo bens de consumo em grande escala e nas façanhas extraordinárias no campo tecnológico, como por ex. a construção de cérebros eletrônicos que superam , em muito, a capacidade individual do homem no campo de cálculos, coordenação e previsão.
Toda esta atividade pressupõe organizações gigantescas para a planificação e administração e provoca uma expansão dinâmica que, ultrapassando barreiras e fronteiras, abrange todo o globo terrestre. Hoje em dia um país é valorizado unicamente pelo seu grau de sub ou super desenvolvimento, isto é, se está à altura daquelas atividades, qual sua renda per capta, sua produção de bens de consumo, qual o seu poder aquisitivo, etc.
Tanto nos sistemas capitalistas como nos sistemas socialistas estamos num coletivismo tremendo devido ao aperfeiçoamento contínuo dos meios de comunicação, de rádio e televisão, da publicidade e propaganda, à aglomeração humana nas cidades e nas fábricas e à automatização do trabalho. Este coletivismo leva à massificação e objetivização do ser humano. Os meios de comunicação e os produtos de consumo condicionam quase tudo: os modos do homem se comportar, se vestir, e se comunicar; através dos continentes, os costumes e modos de viver se transformam em padrões comuns e slogans substituem o diálogo.
Em 1940, Karl Jaspers já falava das esteriotipias da sociedade moderna como conseqüência da massificação. Nesta situação o indivíduo fica aparentemente protegido através da mediocridade e também da expressão comum "A GENTE" , em vez de "EU" ou "NÓS". Martin Heidegger escreveu em 1948 no ensaio "O Caminho do Campo" :
"O perigo ameaça, que o homem de hoje não mais possa ouvir a sua linguagem. Em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só vêem monotonia ao seu redor. O simples desvaneceu-se."
Não será a perda deste 'simples' o que leva à alienação da própria existência humana? Não será esta alienação em si mesma que desencadeia , no homem, a neurose do tédio e, assim, a mania de experimenta sempre algo diferente, para que ele se liberte da monotonia e da estagnação? Se assim for, o que devemos fazer? Voltar à natureza, abandonar e destruir a nossa tecnologia regredindo até a época das cavernas? Não podemos negar as contribuições óbvias e positivas da civilização tecnológica industrial. Apenas enfrentamos um fenômeno global em toda a sua complexidade e problemática. No seu ensaio "Angústia vital, sentimentos de culpa e libertação psicoterápica", Medard Boss prevê, em 1952, que a neurose do tédio ou do vazio se propagará cada vez mais no futuro próximo.
Queremos focalizar a seguir as manifestações múltiplas da neurose do tédio em alguns fenômenos da nossa época. Os tediosos em geral aparecem tensos, com uma expressão artificial, padronizada, preocupados com queixas difusas. Queixam-se da monotonia da vida. Querem solucionar os seus problemas através de palpites, pílulas mágicas e testes vocacionais, e outros recursos fictícios. Tudo isto indica , freqüentemente, uma atitude passiva e a até mesmo uma incapacidade de enfrentar o futuro. A ocupação com rádio e televisão torna-se quase uma atividade compulsiva e a não aquisição rápida dos bens de consumo desencadeia grandes frustrações. O afeto é bloqueado pela agressividade contra si mesmo e contra os outros. Por outro lado, esta alienação em si mesmo provoca grandes cargas de sentimento de culpa e leva à incapacidade de amar no sentido puro e profundo da palavra, acentuando somente o desejo de posse. A maior parte desta problemática fica contida atrás de uma máscara de frieza e inércia. Repetimos que o tédio se manifesta com muita freqüência e intensidade em nossa época tecnocrática. As características desta época fazem parte dos fatores que Karl Jaspers denominou de 'totalidades'. Como exemplo destas totalidades há os padrões de cultura, estratificação da sociedade, raças, conceitos, tradições, costumes, etc., que existem alheios ao indivíduo. Isso quer dizer que o nascimento ou a morte individual em nada altera essas estruturas, porém a existência individual as reflete, com elas freqüentemente se identifica e a elas escraviza.
Em resumo, todo este breve esboço sobre o declínio da religiosidade, sobre as características da época tecnocrática foi uma tentativa para compreender melhor as manifestações da neurose do tédio, tomando em consideração as estruturas das totalidades atuais de nossa época. Num dos seus ensaios, Vicente Ferreira da Silva escreveu: "Viver não é reproduzir algo, mas propor-se algo." No seu artigo: "O humanismo na arte moderna" Theon Spanoudis aborda a manifestação da arte moderna como sendo um propor-se-algo-do-homem dentro das estruturas da civilização industrial. Não é necessário querer realizar o 'propor-se-algo' com façanhas extraordinárias, heróicas, destacadas. Somente se conseguir se libertar da massificação e da alienação, encontrando-se a si mesmo, é que o ser humano poderá mobilizar afeto, entrar num relacionamento autêntico de EU, TU e NÓS e se tornar capaz de propor-se algo.
No decorrer de uma psicoterapia tentamos penetrar nas manifestações do tédio e de outras neuroses, através da 'Intimidade compreensível' para a qual - escreveu Edu Machado: torna-se necessário um determinado tipo de sensibilidade muito semelhante a do artista onde intuição e criação se fundem na captação do real.'
Conseguir a autenticidade esclarecida da própria existência humana, eis o que se tenta no encontro psicoterápico.