ENTREVISTA CONCEDIDA PELO
PROF. JOÃO AUGUSTO POMPÉIA À REVISTA INSIGHT

Por Luís Fernando Tófoli e Flávia Ribeiro - Dez 99

Por Luís Fernando Tófoli* e Flávia Ribeiro** para a Revista INSIGHT (Ano 9, nº. 102 - Dez 99)


Revista INSIGHT: Para começar, como é que você vê, especificamente na Daseinsanalyse, a questão da ética clínica?


João Augusto Pompéia: A Daseinsanalyse tem uma configuração peculiar, pelo fato de ser uma proposta de trabalho que não é oriunda do modelo biológico - como é o caso da grande maioria das teorias psicológicas. Todas elas se desenvolveram a partir da referência biológica, como se o psicológico fosse uma espécie de fenômeno derivado da condição orgânica da espécie Homo sapiens. Com isso, elas carregam para as ciências humanas toda uma tradição do pensamento das ciências naturais, e isso se faz numa época que valoriza muito a idéia de ciências da natureza. Como a Daseinsanalyse vem de uma tradição filosófica, ela questiona os seu fundamentos o tempo todo. Uma segunda peculiaridade é que, dentro da tradição filosófica, a Daseinsanalyse tem a característica de questionar a sua própria compreensão da condição humana como tal. O termo Dasein seria uma designação peculiar do homem, que Heidegger forja para escapar de outras designações, como pessoa, sujeito, indivíduo, homem, etc., porque esses termos todos já carregam consigo uma série de compreensões prévias. O termo marca uma tentativa de compreensão do humano, a partir da sua condição única. A análise do Dasein faz parte do primeiro grande ensaio do pensamento de Heidegger, que é a pergunta que interroga pelo sentido do ser dos entes, o foco que vai orientar seu trabalho desde 1919 até o final de sua vida.


Enquanto a perspectiva tradicional busca prender o homem como uma composição evolutiva dentro do processo da vida, a Daseinsanalyse tenta compreender o homem na sua novidade inaugural. Poderíamos dizer que, para Heidegger, o homem é antes de tudo e, fundamentalmente, uma enorme pergunta. E fazer uma pergunta é uma coisa absolutamente espantosa. Fazer uma afirmação pode ser um comportamento que corresponde, em nível concreto, a uma determinada percepção. Agora, quando se faz uma pergunta, o que se está fazendo? Aí, a compreensão de Heidegger aproxima-se muito do pensamento oriental , pois quando ele busca aproximar o homem do espaço onde se gera toda e qualquer pergunta, ele afirma que fazer uma pergunta é configurar uma falta. Por essa propriedade de fazer buracos, por assim dizer, de criar não-seres, de criar vazios, o homem diferencia-se radicalmente da totalidade dos entes existentes até então. Seria possível dizer que essa capacidade do homem de criar vazio nada mais é do que a reprodução da sua condição mais essencial. Quer dizer, o próprio do homem é um ser um ente cuja essência reside em não-ser. Diferente de todos os outros entes, cuja essência aponta para aquilo que eles são, a essência do homem aponta para aquilo que ele não é. Assim, ser um não-ser é a peculiaridade absolutamente distintiva do homem, e implica ele ser uma profunda contradição em si mesmo, um profundo paradoxo, um profundo espaço de conflitos. É pelo homem ainda não-ser que ele passa toda a sua vida sem fazer outra coisa além de vir-a-ser. Isso significa existir.


INSIGHT: Mas, e quando esse homem, que seria um eterno devir, fica congelado em um diagnóstico terapêutico?


J.A.P.: Todo diagnóstico, como toda identificação, tem como referência o que a pessoa é. O que me fascinou no conceito de doença em Boss é que ele olha para o paciente esquizofrênico pela óptica do não-ser.


Ele diz que o problema do esquizofrênico não é o que ele percebe , o que ele vive, o que ele sente. Seu problema é o que ele não pode perceber, o que ele não pode sentir, o que ele não pode ser. Não é porque uma pessoa conversa com marcianos que nós podemos afirmar que ela seja um doente. O que torna esse indivíduo um doente é a sua não-liberdade frente a esses mesmos marcianos com os quais ele conversa. Porque, segundo Boss, se, em algum momento, este mesmo esquizofrênico pudesse se relacionar com esses mesmo marcianos, de uma maneira livre e autônoma, ninguém poderia honestamente afirmar que ele tenha qualquer problema. Se nós encontrássemos na afirmação de que marcianos não existem, nós teríamos que demonstrar isso. E quem é que pode demonstrar que marciano não existe? Focar o caráter privativo é a grande novidade em termos de psicopatologia introduzida por Boss. Ele deslocou o conceito de doença da apresentação de determinados sintomas e comportamentos pra uma condição de relação. O que estabelece o caráter patológico é a restrição acentuada e progressiva da liberdade da pessoa. E a liberdade, nesse sentido, não é tanto o livre-arbítrio, mas a presença do não-ser. É este não-ser que vai ser o fundamento da ética.


A ética é uma necessidade do homem, apenas pelo fato dele ainda não-ser. Quando nos referimos aos entes em geral - os que são - não trabalhamos com a possibilidade da morada. Os entes não precisam de morada. De morada só precisa aquele ente que, pelo fato de ainda não ser, é absurdamente frágil na sua necessidade absoluta de ser. No seu permanente estado de vindo-a-ser é que ele precisa de um abrigo, já que ele não pode sobreviver entregue à sua condição essencial.


A cadeira pode subsistir entregue a si mesma, mas Dasein, entregue a si mesmo, sucumbe à sua própria insuficiência. Dizer que Dasein está vindo-a-ser, isto é, que ele existe, significa dizer que ele é insuficiente.


INSIGHT: Quando você diz que o homem não cai na mesma categoria dos outros entes, isso não quer dizer que ele seja um privilegiado, certo?


J.A.P.: Ele é um privilegiado pelo fato de ser menos, não pelo fato de ser mais. Por sua condição, digamos assim, inferior. Tudo o que Dasein tenta, durante a sua existência, é chegar aonde os entes sempre estiveram, onde ele compreende que os entes já estão. Isso me lembra uma questão que eu tenho colocado para as pessoas em várias ocasiões. Imaginei que um conjunto de grandes laboratórios no mundo se reúne e faz a seguinte proposta para a cidade de São Paulo: "Durante cinco anos, fizemos uma megapesquisa entre a população miserável que habita a cidade de São Paulo. Por meio dela, conseguimos identificar o perfil das crianças que, com 99% de probabilidade, estarão mortas antes do 5º ano de vida, de tal modo que podemos localizá-las por meio de determinadas características objetivas. Considerando que essas crianças vão morrer mesmo nos próximos 5 anos e que a morte delas é uma coisa absolutamente inútil, porque não vão servir para nada e nem para ninguém, nós queremos fazer a seguinte proposta: oferecemos à cidade de São Paulo uma verba de cinco bilhões de dólares, com a qual vocês não poderão recuperar boa parte dessa população pobre e miserável. Em troca disso, nós queremos que vocês nos entreguem 300 dessas crianças localizáveis com 1% de chance de sobrevivência, para que sejam utilizadas como sujeitos de laboratórios, uma vez que as pesquisas estão chegando num grau tal de sofisticação que poder fazer experiências com seres humanos está ficando cada vez mais urgente. Além de podermos, usando essas 300 crianças, ajudar alguns milhares, talvez até milhões, de seus iguais com a verba que estamos cedendo, criaremos ainda um conhecimento a partir dessa experiências, que vai permitir salvar milhões e milhões de vidas nos próximos 50 anos. Essas 300 crianças, que nos próximos 5 anos vão morrer à toa e inutilmente, serão transformadas, por meio da nossa iniciativa, em grandes heróis cuja morte vai trazer imensos benefícios para a humanidade como um todo. Se vocês não venderem essas crianças, vão fazer alguma coisa por elas?"


Esta é uma questão essencialmente ética. Ela é uma outra formulação daquela colocada por Dostoiévski em Crime e Castigo, que considera de uma maneira brilhante, que o ser humano cai na categoria em que a quantidade é um fator significativo. Ou seja, matar uma pessoa para salvar vinte é válido? Matar um boi, para salvar vinte nós consideramos válido. Quando se usa, mais ou menos ingenuamente, uma referência das ciências naturais ou se usa uma referência técnica para abordar uma questão humana, independentemente da sua vontade, você inscreve o humano na mesma categoria que os outros entes. Aí, o que é razoável não é a ética, é o número.


INSIGHT: Houve um instante em que o homem se considerava o centro do Universo. Desde a instauração das ciências naturais, paulatinamente fomos dando-nos conta de que somos - pelo menos do ponto de vista somático - incomodamente semelhantes às outras coisas que estão ao nosso redor. Como fazer diálogo dessa medida ética com as descobertas da ciência?


J.A.P.: Uma ciência natural só pode encontrar nos fenômenos que estuda aquela dimensão que é similar a ela. Existe aí um erro epistemológico quando se pensa poder, partindo de um instrumento que foi desenvolvido com a finalidade precípua de apreender aquilo que tem um caráter de natureza, apreender qualquer outra coisa que não seja o fenômeno natural. O instrumental da ciência natural é como se fosse um aparelho de rádio. Ele permite detectar, apreender, decodificar e operar uma certa faixa do real. É condição de respeito pela ciência considerar que ela não faz nada mais do que aquilo que ela se propôs a fazer. Nesse sentido, ela é absolutamente honesta consigo mesma. Os mitos sobre a ciência é que são desonestos. Eles dizem assim: "Qualquer âmbito do real pode ser acessado pelo instrumento científico". Isso significaria dizer: "Qualquer âmbito do espectro eletromagnético pode ser alcançado por meio de um aparelho de rádio". Isso não é verdade. A ciência nunca se propôs a isso, e mais, nenhum cientista que se preze espera que o instrumental da ciência apreenda fenômenos que não sejam essencialmente naturais.


INSIGHT: Mas, e o cientista do comportamento?


J.A.P.: Eles trabalham com o comportamento, não com o humano. Eles utilizam um instrumento que se aplica para analisar o comportamento do homem, exatamente da mesma forma que para analisar o do rato, do passarinho, das baleias, dos golfinhos ou das baratas. Os cientistas do comportamento transferem , inclusive porque existe uma consistência conceitual, os resultados de uma experiência daqui ara lá e de lá para cá com a maior facilidade. Seria um absurdo tentar afirmar que, pelo fato de o homem inaugurar uma dimensão nova dentro da realidade, isso signifique que ele rompeu com a sua história e com o seu passado. Desde Aristóteles, existe uma condição na qual o homem se identifica com todos os seres vivos de modo geral. Aliás, existe uma dimensão na qual o homem é absolutamente pertencente à categoria dos corpos físicos...


INSIGHT: E quando esse comportamento inclui coisas que são só humanas? Delírios, alucinações, melancolia, angústia, obsessões...


J.A.P.: Se você considera esses conceitos todos do ponto de vista comportamental, isto não é só humano. Os estudos de indução experimental de psicose em animais, no começo do século, que induziam catatonia em ratos ou conduta histérica em cachorros são chocantes. Não existe nenhum comportamento que seja específico da espécie humana. No conceito de comportamento, desde a sua origem, a diferença do ser humano para os diferentes animais é de ordem quantitativa, não qualitativa. Por outro ponto de vista, a alucinação ou a depressão podem ser vistas como uma experiência humana, desde que essencialmente vinculadas pela linguagem.


Aquilo que aparece no homem, e nós não identificamos em outras formas de vida, é o que é mediado pela linguagem. Ela dá acesso a uma dimensão que não se pode observar diretamente. A linguagem dá acesso a uma coisa que pertence a uma outra dimensão, a uma outra faixa, a do especificamente humano. Existem dimensões da experiência humana onde o homem permanece no mesmo campo dos outros entes. Por exemplo, quando se faz um antibiograma, considera-se que entre o corpo de uma pessoa e uma placa de Petri não existe diferença significativa. Quando se fala do peculiarmente humano, não se podem usar essas instâncias.


Será, então, que se tem que lidar com a singularidade absoluta, toda vez que se estiver referindo à condição humana? Quando se diz que o humano não pode ser trabalhado quantitativamente, ele tem que ser considerado individualmente. Isso significa um bloqueio na possibilidade de generalização do conhecimento; uma condição muito problemática para se produzir conhecimento e procedimentos fundamentados no conhecimento.


INSIGHT: Na prática clínica, onde se está trabalhando com esse ser único e que tem uma série de não-respostas, como lidar com o risco de se querer achar uma resposta que defina?


J.A.P.: O grande anseio de Husserl foi criar um instrumento metodológico que fosse análogo ao método das ciências naturais, só que voltado para as ciências humanas. Também Binswanger tentou criar um instrumental metodológico que permitisse a compreensão da experiência patológica do homem, e que não tivesse o instrumental reducionista das ciências naturais. Até hoje, nós não conseguimos criar esse método. O que se faz enquanto isso não acontece? Temos que trabalhar de forma absolutamente empírica, não no sentido de empirismo, mas de tentativa e erro. Não é que não se possa generalizar a experiência ou o conhecimento que se desenvolve a partir daquelas características que o ser humano compartilha com os macacos, com a placa de Petri ou com outros humanos. É que em momento algum se pode admitir que um homem seja reduzido apenas a isso.


Como é que se pode trabalhar com a doença mental, em que a experiência vivida talvez esteja na esfera mais individualizada? Há duas referências básicas. A primeira é a do mistério, que é fundamental e essencial para a ciência. Ele é uma espécie de manancial do qual jorrará permanentemente o vigor do conhecimento. Toda doença psicológica é antes de tudo uma condição misteriosa.


Dito na referência heideggeriana, no mistério reside o vigor que possibilita o desvelamento daquilo que nós vamos chamar de conhecimento. A força da descoberta pertence ao en-coberto. Isso é tão humano... e, no entanto, é uma coisa com a qual nós lidamos como se fosse muito incômoda. A Segunda referência é a experiência da verdade. Essa experiência, particularmente a que é anunciada na linguagem poética, é uma vivência radical e categórica. É pelo fato de existir uma experiência de verdade anterior à utilização do método que este foi procurado, encontrado e identificado. Ou seja, a experiência da verdade é anterior à construção da verdade. Há duas idéias de verdade: a verdade veritas, do latim, que é o verificável, que é aquilo que é metodologicamente reprodutível, e a experiência de verdade, aquilo que está mais próximo da nomeação grega, aletheia, que em termo gregos significaria o não-esquecido, e que designa uma das características da experiência da verdade. A experiência da verdade é paradoxal, e remete imediatamente ao mistério, pois invoca uma certeza de se estar em contato com uma coisa que é nova e familiar, ao mesmo tempo.


Para que uma coisa seja nova e familiar, pensa o grego, é preciso que ela já tenha sido conhecida e tenha sido esquecida e que no momento em que eu a reencontre, ela tenha a novidade daquilo que, tendo sido esquecido, apresente-se como da primeira vez, mas que, por já Ter sido conhecida em algum momento, apresente-se na sua novidade como muito familiar. Essa referência mnemônica, que Platão vai enunciar de maneira mais característica e que está na raiz de aletheia, fala dessa experiência surpreendente de se encontrar, para algo que não se conhecia, um acesso imediato, ou seja, um acesso que não é mediado por um procedimento. Os teóricos da Gestalt vão chamar essa mesma experiência de insight - visão de dentro. A experiência da compreensão não-mediada é súbita, irrompe, manifesta-se com uma intensidade radical e é única experiência capaz de justificar os processos de tratamento psicológico. Por outro lado, se a verdade for construída, ela será absolutamente inoperante, ela não traduzirá transformação. Não muda nada quando você prova por A + B para o paciente que o comportamento dele é absurdo. Aliás, o próprio paciente é um dos primeiros a dizer que o comportamento dele é absurdo.


INSIGHT: Essa forma de pensar é completamente contrastante com o mundo contemporâneo onde a técnica é preponderante. Se a experiência da verdade não pode ser trazida de uma forma operacionalizada, como pode se dar a atuação do psicoterapeuta?


J.A.P.: A impossibilidade de operacionalização dessa atuação, de forma a reduzi-la a um procedimento padrão, talvez seja a grande dificuldade e o grande mérito do psicoterapeuta. Veja, para um artista de execução, como para um pianista, um ator ou um bailarino, pode-se ensinar a técnica. Mas , quando se pede para o pianista tocar, para o bailarino dançar e para o ator atuar, o que se está buscando é algo que está para além de toda a técnica e que se chama interpretação - exatamente o que Freud pretendeu fazer em seu trabalho terapêutico. Interpretar o paciente não é um termo que, por acaso, coincide com aquele utilizado nas artes de execução. Ele tem exatamente esse caráter do inefável, isto é, aquilo que não pode ser capturado operacionalmente. A técnica pode ser capturada operacionalmente. Pode-se preparar um bailarino, um pianista, um terapeuta. Mas a essência da psicoterapia, como a essência da execução à la Rubinstein de uma peça de Beethoven ou a performance de um bailarino, como Barichnikov, não se produz em nenhum treinamento técnico que se possa saber. Precisa-se, para isso, de dedicação? Sem dúvida nenhuma, talvez até mais do que para o exercício da ciência ou da técnica. Mas o que se busca, o que se pretende, o que tem valor, está para além de tudo isso. Em Heidegger isso é muito forte, porque a associação entre verdade, ética e estética é absolutamente imbricada.


INSIGHT: Dentro desse pensamento, como fica o conceito de interpretação psicanalítica?


J.A.P.: Quando se fala de interpretação em psicoterapia, normalmente se pensa nela como sendo a implicação de uma verdade escondida. Ou seja, como se extraísse do comportamento enigmático do paciente uma verdade que não se apresenta claramente manifesta. Acredito que Freud tinha uma compreensão muito mais artística do que aquela que a Psicanálise herdou. Ele usou a expressão "arte da interpretação" praticamente em todos os seus textos que versavam sobre o tema. Quando ele falava da interpretação, associava com arte, não com técnica. Interpretação não é técnica. Mas assim ela se tornou, talvez pelo vigor de "tecnização" da nossa cultura.


INSIGHT: Ocorreu-me perguntar sobre a transferência e contra-transferência, sentimentos existentes, por excelência, dentro do setting . Como você vê esses conceitos?


J.A.P.: Teríamos que tomar duas referências para isso. A primeira, seria o que se propõe como objetivo a tarefa da psicoterapia. A outra, seria a natureza do conceito de verdade que eu mencionei previamente. A partir disso, a proposta básica da terapia poderia ser vinculada à perspectiva investigativa, onde se busca permitir uma experiência de aletheia. Assim sendo , eu gostaria de falar da questão do recorte da psicoterapia. O que caracteriza sua forma é uma peculiar suspensão do real, que é mais fácil de ser apreendida quando observamos a estrutura do espaço dentro de um teatro, onde existe uma separação virtual absolutamente nítida e essencial entre o palco e a platéia. O que diferencia os dois não é só a posição ou a iluminação. O que os separa é o corte do espaço que estabelece duas realidades radicalmente distintas. A realidade da platéia poderia ser chamada de realidade empírica, real ou objetiva - onde as coisas acontecem de fato. O espaço do palco seria o da virtualidade, da fantasia, do onírico, do faz-de-conta - um outro tipo de espaço. E o encontro desses dois espaços que abre a possibilidade de se assistir a uma peça com prazer. Se não houver esse recorte do espaço, fica impossível assistir a uma peça no teatro. [Jorge Luis] Borges tem um pequeno conto chamado A dúvida de Averroés, em que descreve um sujeito ingênuo que não sabe da regra que separa a natureza do espaço do palco e da platéia. Assim , a descrição que ele faz do teatro é completamente psicótica. Acredito que o espaço da terapia seja muito parecido com o espaço cênico. Ele é o espaço onde vigora, essencialmente, a natureza do relato que o atravessa. Ou seja, o terapeuta nunca sabe se aquilo que o paciente relata entro da sala de terapia corresponde à realidade empírica ou não. Mas não é da competência do terapeuta confrontar esses espaços. Seu trabalho se restringe à história que o paciente traz, como se fosse uma estrutura cênica. Ele deve assumir, a partir do relato do paciente, que é aquilo que ele diz ser. Isso não deve ser assumido na perspectiva de que ele venha a ser o que ele diz que é.


O trabalho da investigação dentro da terapia deve considerar o dado tal como ele é apresentado pelo paciente. Isso suspende, já de partida, a referência do conceito de uma realidade empírica. O relacionamento deve ser entre o grau de coesão entre diferentes informações que ele me fornece: dificuldades, problemas, indecisões, indefinições, contradições que podem ser explicitadas a bem de uma clareza e de uma compreensão maior daquilo que constituem os dados da existência desse paciente. A questão da transferência é uma questão muito delicada. Não se trata de interpretar a transferência como uma espécie de ilusão do paciente. Se existe alguma ilusão ou alguma articulação análoga ao conceito de projeção da figura paterna ou materna na figura do terapeuta, essa ilusão é análoga àquela que ocorre entre o personagem e o ator.


Pode haver um engano do paciente de confundir o ator terapeuta com o personagem psicoterapeuta. Quando o paciente tem a sensação de que está apaixonado, odiando ou que existe algum sentimento muito forte vinculado ao terapeuta como pessoa, provavelmente ele está enganado, porque aquilo que ele conhece do terapeuta é o personagem. Assim como o terapeuta com relação ao paciente, o que a gente chamaria de contra-transferência. Transferência e contra-transferência são apenas o engano que se interpõe entre esse recorte de uma realidade virtual, considerada, e algum momento, como sendo uma realidade em si mesma. Seria como o sujeito na platéia que grita -"Cuidado, ele vai te matar! ".


INSIGHT: E quando o terapeuta começa a acreditar no personagem dele mesmo?


J.A.P.: Teríamos aí um processo análogo à contra-transferência, só que relacionado à auto-imagem que o terapeuta tem dele mesmo. Ele conseguiu ser tão "genial" como terapeuta que ele acabou como Narciso, apaixonando-se pelo personagem que ele representa. Seria o caso de um ator que se apaixonasse pelo personagem que ele está representando. Novamente, ele começaria a Ter sérios problemas para sair do personagem quando chegasse à coxia, quando saísse de cena.


INSIGHT: Qual seria a razão das pessoas se apegarem tanto ás teorias psicológicas?


J.A.P.: Pela razão que as teorias fascinam. Elas dão a sensação de se escapar do mistério, que têm uma face que é tremendamente angustiante, a do caráter precário do fazer, ancorando-o numa estrutura que confere um tremendo poder. Ele é análogo ao poder do feiticeiro, que fala em nome dos deuses. Os terapeutas falam em nome do inconsciente. Aliás, a estrutura epistemológica do conceito de inconsciente é extremamente questionável. Por qualquer ângulo que você apanhe, do ponto de vista epistemológico, nenhuma teoria psicológica se sustenta. Elas nada mais são que um conjunto de hipóteses, mais ou menos bem elaboradas, mais ou menos bem amarradas, formando um conjunto, que , ao serem muito harmonicamente combinadas, têm o aspecto de algo altamente convincente.


A teoria psicanalítica é uma construção conceitual extremamente convincente, mas não é nada mais que isso. Ela não tem âncora em nenhuma operação de análise de consistência teórica. Não tem verificabilidade empírica, não tem mensuração, não tem verificabilidade estatística, não tem, nem mesmo, uma operacionalização adequada aos conceitos. Se vocês pegarem um texto de psicanálise e substituírem a palavra inconsciente por Deus, vocês mantêm exatamente a mesma compreensão do texto. Façam a experiência. O conceito de inconsciente é um construto teórico criado para tornar compreensível um certo conjunto de fenômenos. Até aí, perfeito, o conceito de átomo ou energia também. Estes conceitos são, entretanto formulados de uma forma que admite contestação. Isso é um conceito fundamental para Poper: científico é todo enunciado que pode ser contestado. Um enunciado que não pode ser contestado não e científico. O conhecimento científico está constantemente sendo questionado. É isso que o faz se desdobrar. Na área das ciências humanas, os conceitos não têm essas características.


INSIGHT: Seria correto dizer, então que apesar de os psicoterapeutas freqüentemente se contraporem ao modelo médico restrito, eles, muitas vezes, incorrem, em sua visão teórica, no mesmo tipo de passo falso epistemológico que há no modelo que criticam?


J.A.P.: Perfeito. Isso se dá basicamente porque existe uma sedução tremenda no poder que o modelo das ciências naturais gerou e, ao mesmo tempo, um tremendo "complexo de inferioridade" - digamos assim - das ciências humanas. Questiona-se o modelo médico, pelas suas vinculações com o modelo natural, e daí se sente tão órfão, tão abandonado, tão despojado, tão impotente, numa cultura feita de elementos de poder tão grandiosos, que se acaba caindo na sedução de criar também para si uma estrutura de poder que justifique o seu trabalho, inscrevendo-o no âmbito bastante controvertido da eficiência. Porém, operando-se por tentativa e erro, como é que se vai definir, a priori, o que um terapeuta pode fazer ou não fazer na sala de terapia? Quando se tem uma estrutura tecnológica, pode-se dizer: "Este profissional aqui está errado, este está certo" . Todo um mapa de controles pode ser traçado.


Numa atividade de tentativa e erro, você fica bloqueado pelo resultado. A boa cozinheira é aquela que faz boa comida. E ponto. O mais aterrorizante do questionamento fenomenológico da psicoterapia é exatamente você se dar conta de que tem que confiar que cada profissional tenha inscrito, no seu padrão de compreensão e de atuação, princípios éticos, absolutamente vigorosos. Externamente, isso não tem como ser avaliado.


INSIGHT: Quando você coloca o espaço da terapia, o vislumbre do mistério e a possibilidade do desvelamento, lida-se com uma possibilidade de formação de psicoterapeutas que foge à idéia de uma formação técnica. Como seria esta formação?


J.A.P.: Ela com certeza, foge da técnica. Eu associaria à formação, antes de tudo, de um espírito crítico, pois há que se lidar com conceitos tão abrangentes e tão vastos quanto o conceito de realidade. O indivíduo que interpreta uma determinada situação de uma maneira real está delirando? Chama-se de delírio quando a interpretação que ele faz não é real. Mas...alguém aqui sabe me dizer o que é o real? Onde é que passa o recorte entre real e não-real? Sabe-se, genericamente, que existe um conjunto de pressupostos que são compartilhados na nossa cultura. Só isso. O real é uma certa composição conceitual característica da nossa cultura e deste momento histórico. Coisas que não eram reais há cem anos, hoje são. Provavelmente, coisas hoje aceitas como absolutamente reais, daqui a cem anos não serão. Coisas que nos são absurdas, do ponto de vista da realidade, são óbvias para um índio do Xingu. Se você conversar com um pai de santo, ele vai lhe dizer que existem espíritos que ele vê e com os quais ele fala. Se você perguntar para um cientista, ele vai dizer: "Nós não temos ainda nenhuma evidência científica da existência de espíritos atuando no mundo. Portanto, cientificamente, nós só podemos suspender o juízo". Coisa que muito pouca gente faz. A maioria dos indivíduos que se dizem cientistas falariam: "Como não temos prova da existência, logo não existe". Se você não tem evidência da existência, você tem a evidência da não-existência? Não. Se você não tem evidência nem da existência, nem da não-existência, o que compete a uma perspectiva crítica? Suspender o juízo. Formalmente, do ponto de vista epistemológico, essa seria a resposta correta e coerente. Mas não é a resposta que é dada. A resposta dada é: "Imagine, isso são, evidentemente, padrões inconscientes que estão atuando. Isto é um sentimento de culpa recalcado por causa de tais e tais coisas...". Bem, a hipótese de que o delírio de um paciente esteja sendo provocado pelo recalque de determinadas experiências emocionais, consideradas inaceitáveis no âmbito dos valores desse paciente, é uma hipótese respeitável. Mas o fato de essa hipótese existir não demonstra que não exista espíritos. Não demonstra nada a respeito de espíritos. Essa hipótese oferece uma explicação diferente para aquele fenômeno. Mas a explicação dessa hipótese parece mais coetânea, mais condizente com os padrões de racionalidade, de causalidade que operam no conhecimento autenticado da nossa cultura que a crença do pai-de-santo. Portanto, é mais verdade que essa hipótese esteja mais próxima a algo que se possa verificar que as hipóteses do pai-de-santo. Só isso.


INSIGHT: Muitas das respostas que você dá parecem ser válidas tanto para auxiliar a auto descoberta do paciente quanto a do próprio terapeuta. Ambos ficam aproximados do humano em geral. Vista assim, parece que a tarefa do psicoterapeuta não merece ser tão grandiosa quanto o papel que lhe é atribuído pela cultura...


J.A.P.: Realmente não. O psicoterapeuta, talvez, seja somente a pessoa que se comprometeu a ser radicalmente humana na sua relação com o paciente.


*Psiquiatra. Residente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Vencedor do Prêmio Jovem Psiquiatra da Associação Brasileira Psiquiatria em 1999. **Psicoterapeuta. Psicóloga do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.


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